PERDAS E GANHOS

Como nos reinventarmos diante das adversidades
Trago, em meu coração, um enorme cesto de alegrias acumuladas vida afora. Mas, também, três episódios devastadores. Três dores sem remédio. Três perdas irreparáveis - súbitas, precoces e desnorteantes. Cada uma delas deixou o seu rastro de tristeza e incredulidade. Mas não carrego amarguras. Não em excesso. Hoje sou o que se poderia chamar de uma criatura agridoce.
O primeiro solavanco foi a morte de meu pai. Ele tinha, ao partir, fulminado por um infarto, 54 anos. Eu, 20. Ele era um delegado de polícia. Eu, um filho rebelde, anti-ditadura. Brigávamos muito. Quase diariamente. Eu o menosprezava por suas posições e encarava com desdém as suas preocupações paternas. Até que uma artéria estressada carregou-o para bem longe de minha insolência. Custaram-me anos para que um intenso sentimento de culpa pelo fato de tantas discussões tolas diante de uma figura merecedora de toda a minha gratidão e respeito. Até que o arrependimento, talvez a pior seqüela de uma perda, desse lugar, em meu coração, a uma saudade amena. Até que da cicatriz brotasse uma flor. Foi essa a principal lição que extraí da perda paterna.
Pouco menos de cinco anos mais tarde, já relativamente recomposto da orfandade, eu vivia em Roma e passava as férias de fim de ano em Paris, com Valéria, uma grande amiga. Foi ela quem me levou uma manhã à colina de Montmartre e insistiu para que entrássemos na igreja do Sacre Coeur. Foi lá, em meio ao frio e ao cheiro denso das velas, que ela sussurrou-me ao ouvido. “Zé. Ligaram do Brasil. Seu irmão morreu”. Enormes placas do céu pareciam desabar sobre minha cabeça. Beto. O “Nenê”. Meu maninho. Era dia de Natal.
Ao reencontrar no aeroporto minha namorada que ficara no Brasil, soube que ela estava grávida. Vida e morte se entrelaçaram em mim feito duas serpentes acasalando. Diante de ambas, escolhi a primeira. Trancafiei a memória de Beto num sótão blindado da alma e segui em frente. Sete meses depois, Paulo, meu primogênito, nasceu.
Foi um bálsamo. Mas durou pouco. Eu estava muito fragilizado. Meu redemoinho interior impediu que o casamento emplacasse. A separação, decidida com extrema negligência, pouco tempo depois me nocauteou. Foi outra morte, metafórica. Morreu em mim o rapaz que sonhava ter uma família unida e feliz. As duas lições que emergiram dessa segunda perda. 1. Um luto não deve jamais ser adiado ou relegado a um canto esquecido qualquer de nossa psique. Luto, eu diria, é como a Justiça. Deve ser cumprido. 2. Uma separação, quando não é bem conduzida, produz efeitos muito semelhantes a uma morte. Há nela também muita perda.
Paulo, que fez de mim um pai, foi uma benção. Aos poucos me reergueu, com sua candura e seus olhos imaculadamente azuis. Reencontrei a paz. Após sete anos, casei-me novamente e tive outro filho, Pedro, treze anos mais novo que o irmão. A vida, pouco a pouco, entrou nos eixos. Vieram, então, os anos mais felizes de minha biografia. Tornei-me um adulto, equalizei minhas dores, resgatei o respeito por meu pai e a memória de Beto. Fiz as pazes com o meu passado. Tudo parecia ter se ajeitado.
Em 2011, experimentei a maior e mais genuína alegria de toda a minha vida. Nasceu Rodrigo, meu neto, a coisa mais preciosa que Paulo poderia me dar. Sua própria descendência. Um pedacinho do céu.
Em 2012, porém, o destino alvejou-me novamente, dessa vez com a sua mais negra seta. Eu estava em Belo Horizonte quando o celular tocou. Era Geni, minha mulher, com uma bomba de hidrogênio nos lábios. “Zé. Você precisa voltar para São Paulo. O Paulinho morreu, e você precisa ir a Londres buscá-lo”. Paulo, um cineasta publicitário, estava na Inglaterra dirigindo uma campanha para o lançamento mundial do game Fifa Soccer. Após um longo dia de trabalho, foi para o hotel dormir e nunca mais despertou. Como meu pai, teve um infarto fulminante. Partiu em meio ao sono e aos sonhos que ficaram para trás.
Após ouvir a notícia, uma palavra passou a ecoar insistentemente em minha cabeça. “Aceite! “Aceite! Aceite!...”. Aceitei. Uma paz estranha envolveu-me. Paulo... Eu sabia que teria o resto de minha vida para pranteá-lo. Mas não naquela hora. Trazê-lo de volta ao Brasil era então a única missão que importava. Seria a derradeira homenagem ao meu primogênito. Fui, cumpri passo a passo os rituais dolorosos que me aguardavam e regressamos no mesmo avião. Enquanto sobrevoávamos a foz do rio Tamisa, salpicada por luzinhas de navios, senti um alívio e uma serenidade indescritíveis.
Nos dois anos seguintes, chorei a água de um coqueiral. Nesse ponto, duas mulheres tiveram um papel fundamental nessa minha desventura. Primeiro, minha mãe, dona Dida, com extenso currículo de perdas e resiliência. Aos 90 anos, ela, que já chorara pelo marido, filho, pai, mãe e todos os seus oito irmãos, agora sofria, ao mesmo tempo, por seu filho e seu neto. Mesmo assim, jamais permitiu que eu esmorecesse além da conta. Talvez por trazerem pessoas ao mundo, ainda que inconscientemente, as mulheres parecem saber que, cedo ou tarde, todos partirão. Elas têm maior clareza desse fato.
Minha mulher foi outra grande fonte de amparo. Lembro-me dela enxugando com um paninho as pequenas poças que minhas lágrimas formavam no chão junto a um degrauzinho do quintal em que eu me sentava para chorar todas as manhãs.
Pedro, meu caçula, foi outra peça vital. Só tê-lo por perto já foi uma benção. Mas minha maior fonte de forças foi mesmo Rodrigo, aquele orfãozinho de oito meses. Ele precisava de mim tanto quanto eu dele. Pela segunda vez, Deus teve a clemência de, antes de me fazer ingerir o fel da morte, ministrar-me o antídoto da vida. Rodrigo, em sua infinita candura, a cada dia me ofertava razões para seguir adiante. Mostrou-me que, apesar dos pesares, a vida sempre continua. Hoje ele é um garotão feliz, aos sete anos de idade. Rodrigo, Pedro e, em especial, duas mulheres resgataram-me do pântano da tristeza. Aprendi, a ferro e fogo, que ninguém está imune às perdas e, principalmente, que elas podem ser encaradas com uma postura menos sombria e mais voltada à retomada da vida e da superação. Hoje sou outro homem. Bem melhor e mais sábio. Nem alegre nem triste. Reinventado. Agridoce.